#FOI-SE UMA VEZ MEU HERÓI



Foi-se uma vez meu herói. Ele viveu de literatura. Almoçava Pessoa, jantava Maiakovski e nos lanches intermediários variava o cardápio: ora García Lorca, outrora Rimbaud.

Quando ele decidia comer fora sentava-se numa mesa redonda armado de papel e caneta, e ali mesmo preparava sua própria refeição.

Foi-se uma vez meu herói. Aos finais de semana era diferente, diversificava os pratos entre Dante Alighieri, Augusto dos Anjos, Baudelaire, até chegar em Manuel Bandeira... Ah, ele adorava devorar cada grão de Pasárgada, lhe era emocionante.

Finalmente chegavam as férias. Nas férias era o tempo em que ele mais relaxava. Nada de métricas, rimas e tercetos. Nas férias ele se dava o luxo de ludibriar-se com banquetes especiais. À la carte, começando pelos Russos, ele tinha: Tolstói, Tchekhov, Turgeniev e Dostoievski. Os russos sempre eram os preferidos para o lanche do final da tarde. À noite, a janta era, quase sempre, dedicada aos franceses: Flaubert, Barbusse, Balzac e Victor Hugo. Como não havia dieta, nada lhe impedia de petiscar Cervantes, Machado de Assis e, quando lhe sobrava um espaço, Stevenson.

Foi-se uma vez meu herói. Nas manhãs depois das férias, no geral, ele consumia Kafka. Sorvia devagar o Kafka quente e deglutia os outros Kafkas crocantes: O Castelo, A Metamorfose, Carta ao Pai, O Desaparecido, O Processo, Um Artista da Fome etc.

Ele também bebia muito... O que ele bebia mesmo? Ah, sim. Ele gostava mesmo era das bebidas fortes, embriagava-se de Chacal, Leminski, Torquato Neto, Ana César, Francisco Alvim e Cacaso. Puros, no melhor estilo caubói, sem gelo. Marginalmente.

Foi-se uma vez meu herói. Ele, certa vez, na sua santa gula, ao preparar-se para o almoço habitual de cada dia, sentiu uma coloração diferente no seu Mário Faustino. Trocaram-lhe a comida. Protestou, gritou, esperneou. Nada fizeram. Empurraram-lhe outros tipos de comida. As refeições não eram mais as mesmas, tudo havia mudado porque eles queriam que fosse assim, por osmose. E até os ingredientes avulsos que ele comprava para preparar o próprio almoço havia mudado. Ele não tinha mais nada de puro, de consistente. Os ingredientes e os pratos se renovavam a cada mês, e a cada mês a qualidade piorava. Era tudo muito ruim, nada equiparava-se ao paladar aguçado de que ele detinha.

E triste assim foi-se uma vez meu herói, que morreu de fome literária e desgosto.

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"Essas palavras que escrevo me protegem da completa loucura." (Charles Bukowski)