0 com

DESASSOSSEGOS


"O que a água me deu", por Frida Kahlo

Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma réstia de parte do sol, um campo, um bocado de sossego com um bocado de pão, [o] não me pesar muito o conhecer que existo, o não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim... Isto mesmo me foi negado, como quem nega a esmola não por falta de boa alma, mas para não ter que desabotoar o casaco.

Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se na minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas, submissas como a minha no destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais porque vivo maior. Sinto na minha pessoa uma força religiosa, uma espécie de oração, uma semelhança de clamor. Mas a reação contra mim desce-me da inteligência… Vejo-me no quarto andar alto da Rua dos Douradores, sinto-me com sono; olho, sobre o papel meio escrito, a minha mão sem beleza e o cigarro barato que a esquerda estende sobre o mata-borrão velho.

Aqui eu, neste quarto, a interpelar a vida! a dizer o que as almas sentem! a fazer prosa como os génios e os célebres! Aqui, eu, assim!…

(Fernando Pessoa em Livro do Desassossego)
Read more »
0 com

TODAS AS CARTAS DE AMOR SÃO RIDÍCULAS

    "Natureza Morta", por Paul Cèzanne  
      
      Todas as cartas de amor são
       Ridículas.
       Não seriam cartas de amor se não fossem
       Ridículas.

       Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
       Como as outras,
       Ridículas.

       As cartas de amor, se há amor,
       Têm de ser
       Ridículas.

       Mas, afinal,
       Só as criaturas que nunca escreveram
       Cartas de amor
       É que são
       Ridículas.

       Quem me dera no tempo em que escrevia
       Sem dar por isso
       Cartas de amor
       Ridículas.

       A verdade é que hoje
       As minhas memórias
       Dessas cartas de amor
       É que são
       Ridículas.

       (Todas as palavras esdrúxulas,
       Como os sentimentos esdrúxulos,
       São naturalmente
       Ridículas.)

(Fernando António Nogueira Pessoa)
Read more »
0 com

UM NÚMERO DA PAIXÃO


"La Rentreè (Interior)", por Anita Malfatti


na corda bamba
quero ser teu contrapeso
no número das facas
assoviar nos teus ouvidos
no globo da morte
quero ser teu copiloto
no vai e vem do trapézio
quero ser quem te segura

quero te acompanhar pelas ruas do rio
sorrindo ou chorando
quero me molhar todinho só pra te deixar
sequinha nessa temporal
quero te abraçar apaixonado
sentir teu coração pulsar
quero te beijar do oiapoque ao chuí, bem te vi

porque eu sei que teus cabelos
são tempestades que me alucinam
que despencarei cada vez que subir nos teus andaimes
que me esfaquearei transtornado
com tuas sutis insinuações sobre o tempo
que me transmutarei em nêspera
cada vez que me disseres:
- hasta luego, luz del fuego
que vagarei sem esperanças quando não mais fizeres parte
das cenas dos meus próximos capítulos
que capitularei enfim, com a cabeça espatifada
nos escombros do meu próprio coração.

por Chacal em 1982

 
Read more »
1 com

AGORA VÁ QUE EU NÃO PRESTO

"Cape Cod pela Manhã", por Edward Hopper


E agora, o que somos nós?
Duas lembranças de um tempo feliz?
Duas crises de um amor sem raiz?
Ou a sombra do medo ou do sofrimento?

E agora, não há pano que estanque o sangramento
Não há vestígios de outrora
Não há no rosto sorriso que vigora
Não há razão nem porque.

E agora, você?
Que sempre esteve tão confusa
Também me petrificou com o olhar da medusa
Com sua indecisão e medo de viver.

E agora, o que esperas de mim?
Um cartão sem limites
Um cara com dinheiro e poder
Um carro do ano ou sei lá mais o quê?

E agora sofro por te odiar
Por ter levado de ti o teu pior.
E trago tudo no meu peito tão só
Trago tudo num peito sem dó.

Vá que eu não presto

Se um dia te protegi com a mentira, amor
Foi só porque eu vi que no playground
A paixão brinca de dor
E que o amor é o caminho pro sofrer.

As flores que colhi no teu jardim
Eu plantei sobre o asfalto
Que é para ficar seco dentro de mim
O que sobrou do tal passado.

Agora vá
Diga a seus pais que eu lhe deixei
E que eu não presto
E sem virar a folha para trás
Se esqueça de mim
Porque eu não presto.

Não se preocupe comigo
Se eu me perder, sei me achar.
Posso até ficar sem rumo
Sem abrigo
Mas o meu norte
Sempre será o bar.

por Diego Bruno da Silva Pereira
Read more »
0 com

ILÍCITA

("Os Girassóis", por Vincent Van Gogh)

Invadiu-me a casa
Furtou-me um beijo
E roubou-me o coração.
Read more »
2 com

MENINICE


("Yellow, Red and Blue", por Kandinsky)

Chegas não mais que de repente
E por instantes intermináveis
Consertas peça por peça
Do quebra-cabeça quebrado
Que era meu coração

Chegas não mais que de repente
E me reportas novamente à meninice,
À instabilidade e à infantilidade
Que é a paixão na meninice.

Chegas não mais (nem menos) que um
Amor à primeira vista; e me conquista
Amiúde, sem pressa, no silêncio.
E nesse silêncio me perco no invólucro
Dos teus braços, abraços e carícias.

Chegas assim: devagar, divagando
Em meus recentes sonhos e fazes
Da realidade um sonho.
Então, tudo é mais colorido, mais belo,
Como que para um menino.

Chegas não mais que de repente
E fazes dum homem sólido, altivo,
Um menino sem malícias.

E não mais que de repente
Chegas e partes com a certeza
De que voltarás todos os dias,
Pontual como o sol...
                                  [Não mais que de repente.
Read more »
0 com

ELE É ELA OU HOMENAGEM A CHACAL

("Narciso", por Caravaggio)


Ele sonha. Ela acorda. Ele quer tê-la. Ela já o quis. Ele precisa dela pra viver. Ela nem tanto. Ele declara-se ocultamente. Ela desdenha, finge não perceber. Ele se chateia. Ela tira por menos. Ele faz-se difícil. Ela o ignora. Ele, então, se humilha. Ela ri. Ele faz-se fácil. Ela, difícil. Ele cansou. Ela sabia, era só fogo. Ele recompõe-se. Ela nunca perdeu a compostura. Ele se reanima, se arruma, se ajeita, se enfeita e vai pra caçada. Ela põe o baby-doll e vai deitar. Ele desfila, passa, repassa, cantarola, grita, dança. Ela ri, de novo, mas só quer estudar. Ele se vê com chance. Ela está animada. Ele dá-se pra ela. Ela não aceita. Ele já não tem orgulho. Ela o possui todo para si. Ele diz que a completa. Ela diz que já é completa.
(Ele é óleo de cozinha. Ela, azeite de oliva. Ele é pimenta malagueta. Ela, catchup levemente apimentado.)
Ele quer montanha russa. Ela, carrossel. Ele, então, aceita um pedalinho. Ela, agora, quer velocidade. Ele já não sabe o que fazer. Ela o tem na mão. Ele está cabisbaixo. Ela, de nariz empinado. Ele vai se esvaindo.  Ela tenta prendê-lo. Ele se solta, solto. Ela quer possuí-lo. Ele desencantou. Ela, então, fala de amor. Ele diz que já encontrou um novo. Ela chora. Ele não pode fazer nada. Ela se desespera, faz cartinha. Ele nem lê. Ela, então, pergunta a ele se ainda gosta dela. Ele mente, diz que não. Ela morre de ciúmes. Ele faz de propósito. Ela sabe disso. Ele sabe que ela sabe. Ela recobra-se aos poucos. Ele não crê. Ela se levanta, sacode a poeira. Ele ainda tá por cima. Ela vai ao shopping. Ele, ao bar. Ela compra lindas roupas. Ele anda molambo. Ela faz maquiagem, tratamento, depilação, repique, sobrancelha, buço e vai pra balada. Ele, de cabelo grande, ao bar com os amigos. Ela desfila, dança, sua, cansa, se embriaga e pega geral. Ele descobre. Ela descobre que ele descobre. Ele fica puto. Ela não deve satisfação. Ele, pois, foi tomá-la. Ela sentiu-se bem, linda. Ele, um fraco. Ela não liga. Ele liga. Ela atende todas as vezes. Ele quer estar bem. Ela quer vê-lo mal. Ele quer vê-la bem, mas consigo. Ela ainda quer o mal. Ele aceita o mal. Ela não aceita que ele aceite. Ele diz que merece isso. Ela diz que nem tanto. Ele diz que sim. Ela pede desculpas. Ele aceita, calado. Ela diz que nunca mais fará. Ele diz a mesma coisa. Ela diz que gosta dele. Ele diz que gosta dela. Eles sorriem. Eles se beijam. Eles se amam.
Read more »
0 com

À uma breve amizade





– E aí, primo? O que achou da cidade?


– Normal. É bem plana, né? Não tem muitos prédios...

Fez-se silêncio por uns dois minutos e meu tio estacionou o carro em frente à rodoviária para nos buscar.
Mais silêncio dentro do carro. E na metade do caminho meu tio fala:

– Você vai gostar, cara. A cidade é bem calma como você pode perceber, não tem trânsito agitado e isso é um alívio – disse ele manobrando o volante sem olhar para o lado.

– É, tio. Vou gostar sim!

Por que não gostaria? Uma experiência nova!

Chegamos à casa da esposa do meu tio. E era lá que ficaríamos hospedados até nos mudarmos. Eu estava demasiado cansado e tudo o que queria era tomar um banho, comer algo e descansar. Fiz os dois primeiros, mas não o terceiro. Pois, quando estava no primeiro estágio de um sono profundo, senti um tecido úmido e gelado no rosto. Pensando que estava sonhando com um beijo de criança, passei a mão e senti uma bola de pêlos. Acordei na mesma hora dando um salto da cama, porém não deu nem tempo de fazer mais nada, os latidos foram intermináveis: era Vick. Um labrador fêmea, em obesidade mórbida, que tinha os pêlos grandes e lisos e negros. Vick tinha um tamanho um pouco maior para a sua raça e usava um colar com a letra “V”. Foi o suficiente para eu passar a noite em claro. Estava certo, eu não gostava dela – a cadela – e nem ela de mim.

A primeira impressão foi péssima. Éramos água e óleo. Aonde ela me via não se chegava e eu tampouco fazia carinho nela. Enquanto que todo mundo a idolatrava, pois ela adorava ser o centro das atenções, eu a rejeitava. Era sapeca e bagunceira. Só respondia aos comandos da esposa de meu tio, seja na hora de comer ou na hora de ir dormir.

Os dias foram passando e eu contente por ter começado a minha aula no novo colégio e mais contente ainda por saber que estávamos perto de nos mudar. Enfim, iria poder dormir tranquilamente e sem latidos trovejantes.

Uma semana depois, meu tio me falou que mudaríamos e que a sua esposa e sua enteada viriam conosco, isso, óbvio, incluiria a Vick também, afinal, era o xodó da família. Fiquei chateado, mas nada falei.
Quando nos mudamos, pareceu que a cadela tinha esquecido que eu era seu inimigo número um e vivia implorando pelo meu carinho. Bastava eu chegar perto, que ela levantava-se, pegava o osso de borracha e com uma orelha erguida e outra abaixada pulava em mim querendo que eu jogasse o osso para que ela pudesse mostrar sua competência, entretanto eu só respondia:

– Sai daqui, pulguenta!!

Ela abaixava a cabeça e saía caminhando bem devagar com sua pança protuberante, para um lado e para o outro, para um lado e para o outro... só a barriga se mexia.

Eu saía todo dia para ir à escola e sempre antes de fechar o portão, ela encostava a cabeça nas patas dianteiras e me olhava com aquela cara de órfã, devia pensar: “Por que ele não brinca comigo?” Mas eu nem ligava, batia o portão na cara dela e seguia para a aula.

Mas Vick era insistente. Ou esquecida mesmo. Lembro que certa vez, eu e meu primo, quando não tínhamos o que fazer passávamos o tempo fazendo “maldades” com ela. Preparamos a sua ração, como a sua dona tinha nos pedido, e acrescentamos alguns ingredientes na vasilha: café, açúcar, leite, adoçante, sal, shoyu, tempero para carne e água. Ela comeu tudo e lambeu a vasilha até não sobrar nenhum vestígio. Nós nos divertíamos com o “prato especial”. Mas Vick era sabida e isso só funcionou duas vezes com ela, que depois passava mal e ficava comendo grama o resto dia.

E assim passavam os dias. Até que certa vez, a enteada do meu tio me pediu educadamente para que eu limpasse as necessidades da cadela. Eu o fiz, mais por ela do que pela cadela, óbvio. Porém, esse ato passou a ser constante e toda vez que descia para limpar, aproveitava e jogava o ossinho dela para longe, ela adorava correr, apesar do ser pesada e lenta. Mas o que tinha demais em jogar o osso, se ela ficava tão feliz? Depois passei a limpar o cocô, jogar o osso e fazer-lhe um carinho em suas orelhas. Só. Nada de pular em cima de mim... ainda não!

Certo dia quando estava triste, com enormes saudades do povo da minha cidade, desci para fazer a rotina e após o carinho me queixei para ela da saudade e tudo mais. Parecia que ela tinha entendido, pois na mesma hora em que sentei no chão e comecei uma fala triste, ela se acalmou e colocou a língua para dentro novamente. Retorceu o focinho e fez uma cara ingênua. Quando eu abracei-a, ela se soltou e voltou a ofegar e ficar alegre. Recomeçou a pular em cima de mim. Foi então que pensei:

– É só uma cadela. Jamais me compreenderá.

Puro engano.

Numa manhã de um domingo, o portão não havia sido trancado e quando acordamos Vick tinha sumido. Foi um desespero total. Até eu que pensei que não sentia nada pela cadela fui procurar. Meu tio pegou o carro e foi dar uma volta no quarteirão, enquanto nós procurávamos na outra rua. Mas foi somente umas duas horas depois que a encontramos atolada numa lata de lixo e com os pêlos só areia. Nós estávamos desesperados e ela com uma cara de “gente, não precisa tudo isso, estou aqui.” Só aquietamos quando ela já estava salva na garagem novamente.

E assim, sem querer, eu criei um laço afetivo com quem eu menos esperava. Não consegui mais passar um dia sem lhe dar um abraço, sem jogar o osso e sem “conversar” com ela. Ela passou a gostar de mim também. Bastava eu aparecer, e ela vinha correndo com sua pança se jogar em cima de mim.
Cinco meses passaram e eu tive que voltar para minha cidade natal. Não pude conter a tristeza ao me despedir dela, e ela sem ao menos saber que fui para nunca mais vê-la, deve ter ficado chateada comigo. E durante a correria desses dias, fiquei sabendo que ela havia fugido e que nunca mais havia voltado. Recebi essa notícia com uma enorme tristeza. Mas fiquei com a certeza de que às vezes podemos aprender mais com as amizades “mudas” do que com as falantes. E aquele focinho gelado junto da lambida que me acordou, pode deixar, Vick, eu jamais esquecerei.
Read more »

About me

Minha foto
"Essas palavras que escrevo me protegem da completa loucura." (Charles Bukowski)