DESASSOSSEGOS


"O que a água me deu", por Frida Kahlo

Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma réstia de parte do sol, um campo, um bocado de sossego com um bocado de pão, [o] não me pesar muito o conhecer que existo, o não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim... Isto mesmo me foi negado, como quem nega a esmola não por falta de boa alma, mas para não ter que desabotoar o casaco.

Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se na minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas, submissas como a minha no destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais porque vivo maior. Sinto na minha pessoa uma força religiosa, uma espécie de oração, uma semelhança de clamor. Mas a reação contra mim desce-me da inteligência… Vejo-me no quarto andar alto da Rua dos Douradores, sinto-me com sono; olho, sobre o papel meio escrito, a minha mão sem beleza e o cigarro barato que a esquerda estende sobre o mata-borrão velho.

Aqui eu, neste quarto, a interpelar a vida! a dizer o que as almas sentem! a fazer prosa como os génios e os célebres! Aqui, eu, assim!…

(Fernando Pessoa em Livro do Desassossego)

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"Essas palavras que escrevo me protegem da completa loucura." (Charles Bukowski)