À uma breve amizade





– E aí, primo? O que achou da cidade?


– Normal. É bem plana, né? Não tem muitos prédios...

Fez-se silêncio por uns dois minutos e meu tio estacionou o carro em frente à rodoviária para nos buscar.
Mais silêncio dentro do carro. E na metade do caminho meu tio fala:

– Você vai gostar, cara. A cidade é bem calma como você pode perceber, não tem trânsito agitado e isso é um alívio – disse ele manobrando o volante sem olhar para o lado.

– É, tio. Vou gostar sim!

Por que não gostaria? Uma experiência nova!

Chegamos à casa da esposa do meu tio. E era lá que ficaríamos hospedados até nos mudarmos. Eu estava demasiado cansado e tudo o que queria era tomar um banho, comer algo e descansar. Fiz os dois primeiros, mas não o terceiro. Pois, quando estava no primeiro estágio de um sono profundo, senti um tecido úmido e gelado no rosto. Pensando que estava sonhando com um beijo de criança, passei a mão e senti uma bola de pêlos. Acordei na mesma hora dando um salto da cama, porém não deu nem tempo de fazer mais nada, os latidos foram intermináveis: era Vick. Um labrador fêmea, em obesidade mórbida, que tinha os pêlos grandes e lisos e negros. Vick tinha um tamanho um pouco maior para a sua raça e usava um colar com a letra “V”. Foi o suficiente para eu passar a noite em claro. Estava certo, eu não gostava dela – a cadela – e nem ela de mim.

A primeira impressão foi péssima. Éramos água e óleo. Aonde ela me via não se chegava e eu tampouco fazia carinho nela. Enquanto que todo mundo a idolatrava, pois ela adorava ser o centro das atenções, eu a rejeitava. Era sapeca e bagunceira. Só respondia aos comandos da esposa de meu tio, seja na hora de comer ou na hora de ir dormir.

Os dias foram passando e eu contente por ter começado a minha aula no novo colégio e mais contente ainda por saber que estávamos perto de nos mudar. Enfim, iria poder dormir tranquilamente e sem latidos trovejantes.

Uma semana depois, meu tio me falou que mudaríamos e que a sua esposa e sua enteada viriam conosco, isso, óbvio, incluiria a Vick também, afinal, era o xodó da família. Fiquei chateado, mas nada falei.
Quando nos mudamos, pareceu que a cadela tinha esquecido que eu era seu inimigo número um e vivia implorando pelo meu carinho. Bastava eu chegar perto, que ela levantava-se, pegava o osso de borracha e com uma orelha erguida e outra abaixada pulava em mim querendo que eu jogasse o osso para que ela pudesse mostrar sua competência, entretanto eu só respondia:

– Sai daqui, pulguenta!!

Ela abaixava a cabeça e saía caminhando bem devagar com sua pança protuberante, para um lado e para o outro, para um lado e para o outro... só a barriga se mexia.

Eu saía todo dia para ir à escola e sempre antes de fechar o portão, ela encostava a cabeça nas patas dianteiras e me olhava com aquela cara de órfã, devia pensar: “Por que ele não brinca comigo?” Mas eu nem ligava, batia o portão na cara dela e seguia para a aula.

Mas Vick era insistente. Ou esquecida mesmo. Lembro que certa vez, eu e meu primo, quando não tínhamos o que fazer passávamos o tempo fazendo “maldades” com ela. Preparamos a sua ração, como a sua dona tinha nos pedido, e acrescentamos alguns ingredientes na vasilha: café, açúcar, leite, adoçante, sal, shoyu, tempero para carne e água. Ela comeu tudo e lambeu a vasilha até não sobrar nenhum vestígio. Nós nos divertíamos com o “prato especial”. Mas Vick era sabida e isso só funcionou duas vezes com ela, que depois passava mal e ficava comendo grama o resto dia.

E assim passavam os dias. Até que certa vez, a enteada do meu tio me pediu educadamente para que eu limpasse as necessidades da cadela. Eu o fiz, mais por ela do que pela cadela, óbvio. Porém, esse ato passou a ser constante e toda vez que descia para limpar, aproveitava e jogava o ossinho dela para longe, ela adorava correr, apesar do ser pesada e lenta. Mas o que tinha demais em jogar o osso, se ela ficava tão feliz? Depois passei a limpar o cocô, jogar o osso e fazer-lhe um carinho em suas orelhas. Só. Nada de pular em cima de mim... ainda não!

Certo dia quando estava triste, com enormes saudades do povo da minha cidade, desci para fazer a rotina e após o carinho me queixei para ela da saudade e tudo mais. Parecia que ela tinha entendido, pois na mesma hora em que sentei no chão e comecei uma fala triste, ela se acalmou e colocou a língua para dentro novamente. Retorceu o focinho e fez uma cara ingênua. Quando eu abracei-a, ela se soltou e voltou a ofegar e ficar alegre. Recomeçou a pular em cima de mim. Foi então que pensei:

– É só uma cadela. Jamais me compreenderá.

Puro engano.

Numa manhã de um domingo, o portão não havia sido trancado e quando acordamos Vick tinha sumido. Foi um desespero total. Até eu que pensei que não sentia nada pela cadela fui procurar. Meu tio pegou o carro e foi dar uma volta no quarteirão, enquanto nós procurávamos na outra rua. Mas foi somente umas duas horas depois que a encontramos atolada numa lata de lixo e com os pêlos só areia. Nós estávamos desesperados e ela com uma cara de “gente, não precisa tudo isso, estou aqui.” Só aquietamos quando ela já estava salva na garagem novamente.

E assim, sem querer, eu criei um laço afetivo com quem eu menos esperava. Não consegui mais passar um dia sem lhe dar um abraço, sem jogar o osso e sem “conversar” com ela. Ela passou a gostar de mim também. Bastava eu aparecer, e ela vinha correndo com sua pança se jogar em cima de mim.
Cinco meses passaram e eu tive que voltar para minha cidade natal. Não pude conter a tristeza ao me despedir dela, e ela sem ao menos saber que fui para nunca mais vê-la, deve ter ficado chateada comigo. E durante a correria desses dias, fiquei sabendo que ela havia fugido e que nunca mais havia voltado. Recebi essa notícia com uma enorme tristeza. Mas fiquei com a certeza de que às vezes podemos aprender mais com as amizades “mudas” do que com as falantes. E aquele focinho gelado junto da lambida que me acordou, pode deixar, Vick, eu jamais esquecerei.

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"Essas palavras que escrevo me protegem da completa loucura." (Charles Bukowski)